Texto I - trecho da primeira parte da obra: "A terra"
"Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua.
Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas.
Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante . . ."
(Euclides da Cunha. "Os sertões". São Paulo, Círculo do Livro, 1975, p. 38)
espinescente: que cria espinhos
estepe: vasta planície ou região semidesértica
flexuoso: sinuoso, ondulante
urticante: que queima como urtiga
vereda: trilha que marca o rumo a seguir
Texto II - Trecho da segunda parte da obra: "O homem"
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias."
(Idem, p. 92-93)
adormido: adormecido.
atonia: perda do tônus, das forças.
estadear: manifestar, demonstrar.
Hércules: personagem da mitologia, caracterizado por ter uma força incomum.
neurastênico: fraco, irritado.
Quasímodo: personagem corcunda da obra "O corcunda de Notre Dame", de Victor Hugo
remorado: adiado, retardado.
tabaréu: soldado inexperiente; pessoa inapta para fazer alguma coisa; caipira.
titã: personagem da mitologia; pessoa dotada de força extraordinária.
transmutação: ato ou efeito de transformar-se.
Texto III - Trecho da terceira parte da obra: "A luta"
Decididamente era indispensável que a campanha de canudos tivesse objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, continua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.
[...]
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados."
(Idem, p. 405 e 476)
Texto IV - Prefácio feito por José Saramago para o livro "Terra", de Sebastião Salgado
"No dia 17 de abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em ação de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas de dezenas de pessoas feridas.
Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do Pará, arvorando-se a si mesmas em juiz numa causa em que, obviamente, só poderia ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os seus 155 soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial contra três dos camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico dos manifestantes era constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes da invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços haviam sido considerados ilegais nas mãos daqueles que, obrigados pela necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela frente a polícia militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas. Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não há nada mais fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda teima em afirmar ser complicada demais para o entendimento rude do povo."
(José Saramago. In: Sebastião Salgado. "Terra". São Paulo, Companhia das Letras, 1977, p. 11)
alabarda - arma antiga, formada por haste de madeira em ferro largo e pontiagudo, atravessado por outro em forma de meia-lua.
chuço - vara ou pau armado de ponta de ferro ou de aço.
simulacro - ação simulada, falsificação
Atividade - textos I, II, III e IV
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- De acordo com o texto I, como se caracteriza o lugar onde vive o sertanejo?
- No texto II, contrapondo o sertanejo ao homem do litoral, o narrador descreve os aspectos contraditórios da constituição física e do comportamento do sertanejo.
a) Explicite essa contradição.
b) Que personagens da literatura forma utilizadas para dar ideia de quanto a figura do sertanejo é contraditória?
c) Na oposição entre o homem do litoral e o sertanejo, interprete: Quem é o mais forte, segundo do ponto de vista do narrador? Justifique sua resposta.
- No 1º parágrafo do texto III, o autor critica a guerra em si e afirma que outra “guerra mais demorada e digna” deveria ser travada. Qual é essa guerra?
- No texto IV, José Saramago comenta o massacre ao movimento dos sem-terra ocorrido em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. Compare o texto de Saramago aos outros três textos.
a) O que há de comum entre o movimento de Canudos e a luta pela reforma agrária encabeçada pelo movimento dos sem-terra?
b) Que semelhanças existem entre o massacre de Carajás e o de Canudos quanto às condições de armamento dos soldados e da população civil?
c) Que semelhança existe entre a versão oficial dada à guerra de Canudos e a apuração que a própria polícia fez dos atos de violência cometidos em Carajás?